Recentemente, criou-se uma tendência massiva à discussão, não muito inortodoxa, do futuro da geopolítica moderna. Esta inclui, naturalmente, previsões de teor econômico referentes ao duelo entre as duas maiores potências do globo, China e Estados Unidos, e, em uma viela um tanto mais obscura, previsões de teor cultural, na medida em que estas duas civilizações apresentam, dos costumes mais pessoais ao modus operandi das instituições governamentais, distinções que fazem delas inerentemente opostas uma à outra. Enquanto subdivisão desta discussão, muito ampla em totalidade, vem a questão de a China ser ou não o país do futuro, de onde se puxa, muitas vezes, os âmbitos tecnológico e urbano como fontes energéticas desta impulsão social. Este assunto é tratado extensivamente sob os mais diversos rótulos, mas, no que compete ao sinofuturismo, as dissertações parecem instáveis, e se desdobram em pulos inconscientes de um tópico a outro; flutuam entre arquitetura, transporte, tecnologia de consumo e produção, arte, cultura pop, soft power, design urbano, etc. Em certo sentido, há muita utilidade no navegar por entre estes ramos, mas, no presente texto, a intenção é sistêmica, envolta em uma linha mais linear. Penso ser válido dividir em três seções principais as razões que, juntas, posicionaram a China como o vetor do futuro. São elas o modelo industrial altamente tecnológico do país, o legado do boom no setor imobiliário a partir de 2008 e a metodologia pela qual o Estado chinês comanda a nação. Falemos, antes, de um pouco de história econômica chinesa.

No início da década de 2020, o modelo econômico que sustentava o crescimento econômico chinês desde 2008 finalmente colapsou. Este fluxo econômico, à época, se fundamentava, principalmente, em investimentos imobiliários maciços, o que originou um dos saltos de desenvolvimento mais impressionantes de todos os tempos, mas que, paradoxalmente, já continha a semente de uma profunda estagnação em um futuro relativamente próximo. As vendas imobiliárias, incentivadas por um pacote estatal de estímulo de quatro trilhões de Yuan, financiavam os governos locais, que não possuíam muito poder sobre o imposto de renda e, portanto, a fim de aumentar a arrecadação, passaram a aprovar e incentivar construtoras e incorporadores, dado serem estes úteis ao aumento do valor da terra. Paralelamente, o governo chinês incentivava os bancos a concederem empréstimos aos incorporadores como forma de sustentar a macroeconomia durante uma série de choques. Por óbvio, o crescimento desenfreado levou a uma eventual bolha financeira a partir do momento em que os empréstimos utilizados para financiar esta explosão superaram a capacidade do setor de gerar retornos. Não há valor econômico, é evidente, em construir estabelecimentos que não serão utilizados por ninguém, e, por isso, houve uma grande recessão a partir de 2021; sem lucro, as construtoras se endividaram, e, em última instância, também alguns bancos sofreram com a incapacidade destas empresas de pagar os juros devidos, razão pela qua o crescimento chinês desacelerou exponencialmente. A resposta estatal à crise foi obstruir artificialmente, por meio da política das Três Linhas Vermelhas, que limitava a dívida máxima a um valor mínimo e impedia que o acúmulo de imóveis se estendesse indefinidamente, o setor imobiliário, buscando se esquivar de um colapso completo. Como que em um balanço, um dos lados desta ação resultou no impedimento de uma crise econômica completa; o outro, porém, neutralizou por completo a fonte de renda chinesa das últimas duas décadas. Surgiu, então, uma nova perspectiva, um tanto arriscada, mas relativamente eficiente. Redirecionou-se, enfim, os investimentos anteriores a um setor completamente distinto, e, em alguma medida, muitíssimo mais futurista: a alta tecnologia. Nasce um salto tão estético e temporal quanto se poderia imaginar, que arremessara a China do passado ao futuro em um piscar de olhos.

Neste ponto, os bancos chineses, mais uma vez inflados por liquidez estatal, despejaram fluxos maciços de capital em setores-chave: automóveis, semicondutores, máquinas-ferramentas, robótica, eletrônicos, baterias, aeronaves, engenharia de automação e computação, entre outros [1]. Os subsídios às empresas de tecnologia funcionaram como catalisadores, e ainda funcionam, ao crescimento exponencial e à aceleração de seus ciclos de inovação. Refiro-me, aqui, a empresas como BYD, Xiaomi e DJI, que se tornaram hubs corporativos de uma sociedade em mutação. Hoje, as injeções estatais destinadas à expansão deste setor perderam intensidade, mas operaram em escala decisiva entre 2021 e 2023. Apesar do recuo destas injeções tecnológicas, cumpre acrescer, os empréstimos industriais continuam a expandir-se em ritmo acelerado [2]. O capital drenado para esse ecossistema alimentou uma onda de investimentos diretamente vinculados à noção de futuro, qualquer que seja a semântica aplicada a esse termo. Parte desse impulso cristalizou-se em tecnologias de produção, como as máquinas-ferramentas e os robôs industriais que estruturam as fábricas hiperautomatizadas da China; outra parte projetou-se em tecnologias de consumo, como a rede ferroviária de alta velocidade, hoje maior que todas as redes combinadas do restante do planeta. O boom tecnológico, por si só, não será suficiente para restaurar os níveis de crescimento pré-pandemia, mas, ainda assim, transfigurou as metrópoles chinesas, inundando-as com artefatos futuristas: drones de entrega, shows de drones, robôs autônomos, táxis aéreos, trens de velocidade, sistemas de pagamento por reconhecimento facial, inteligência artificial operacionalizada como vigilância, veículos elétricos sofisticados, máquinas de manutenção de arranha-céus — e a lista se expande. O regime regulatório permissivo da China, reflexo pragmático de seu governo, acelerou a difusão dessas tecnologias de forma muito mais intensa que no Ocidente, onde filtros ideológicos — ambientais, humanitários e outros — atuam como freios. Este mesmo ciclo de investimento, paradoxalmente, resultou também em um excesso de LEDs baratos, hoje onipresentes em arranha-céus e shoppings, como resíduos luminosos de um processo acelerado. A China traduziu em realidade uma conceituação futurista e transhumanitária que, no Ocidente, permanece majoritariamente conceitual, e não à toa é possível identificar facilmente materializações visuais desse fenômeno em qualquer cidade chinesa moderna [3].

Em verdade, porém, a súbita percepção da China como sinônimo de futuro deve sua existência ainda mais aos investimentos maciços, hoje já esgotados, em infraestrutura. Nem as florestas de arranha-céus recobertos por cortinas de LED, nem os quilômetros intermináveis de trilhos de trem, nem os vastos shoppings recém-implantados nos centros urbanos teriam emergido sem os estímulos de 2008. Robôs e drones impressionam, ocupam o imaginário coletivo, mas é o ambiente arquitetônico, sua escala mineral e luminosa, que monopoliza a percepção do público. Em outras palavras, a era imobiliária chinesa pode ter terminado em lágrimas para muitos governos locais, mas deixou atrás de si a infraestrutura física de um lapso temporal projetado como ponteiro procedimental ao futuro. Quando visitantes enxergam na China a materialização do amanhã, o que de fato observam é um passado econômico ainda fresco, sedimentado em concreto, vidro e neon.

Surge, a esta altura, uma questão pertinente: como seria, de fato, este futuro chinês? Aqui, vejo uma relação inversa ao Ocidente: talvez o Ocidente seja maior do que parece, na medida em que a China parece maior do que realmente é. Tomemos como exemplo o urbanismo chinês. Os ocidentais que vão à Ásia e vêem muitos arranha-céus e letreiros luminosos presumem, por vezes, que a maioria das cidades asiáticas desenvolvidas seja igual. A forma com que a China constrói suas cidades, no entanto, é muito distintiva, a exemplo do seu contraste com o Japão. As cidades japonesas são hiperaglomerações de bairros densos, com uso misto, sempre repletas de pequenas empresas. As cidades chinesas, no entanto, foram projetadas com alguma distância em mente, apresentando-se, portanto, de forma muito mais dispersa. Veja o que Peter Calthorpe escreveu em 2016, quando a China ainda estava no meio de sua enorme onda de construções: "Pensa-se que os edifícios altos e de alta densidade em muitas cidades chinesas sejam inerentemente urbanos, mas não o são. O crescimento inteligente e o urbanismo têm mais a ver com conexões, escala humana, facilidade de locomoção a pé e usos mistos do que com densidade bruta. O padrão chinês de superquadras fechadas (muitas vezes com mais de 40 acres, ou 16 hectares, cada) e usos isolados é, na verdade, uma versão em arranha-céus dos subúrbios americanos. Na China, blocos residenciais de uso único com unidades praticamente idênticas estão agrupados em superquadras cercadas por grandes vias arteriais. Vastas distâncias separam os destinos cotidianos e criam ambientes hostis aos pedestres. As calçadas raramente são ladeadas por serviços úteis, e atravessar a rua é uma tarefa arriscada. Os centros de trabalho são distantes e os deslocamentos são longos, especialmente para os grupos de baixa renda. Nas principais cidades chinesas, o congestionamento se estende por todas as horas do dia. Nos últimos cinco anos, a China construiu mais de 30.000 quilômetros de vias expressas [...] O amor da China pelos carros se transformou em um romance ardente [...] Assim como as cidades americanas das décadas de 1950 e 1960, as cidades chinesas estão trabalhando para acomodar o crescimento explosivo do transporte automotivo, construindo mais rodovias, anéis viários e estacionamentos."

E eis como Dwarkesh Patel descreveu a situação após uma viagem recente: "Fora de Pequim e Xangai (e às vezes até mesmo dentro delas), dá para perceber que esses arranha-céus foram construídos por um país com um PIB per capita de US$ 10.000. Essas fileiras intermináveis de arranha-céus, construídos na frenética onda de construção das últimas décadas, são feios; caixas feitas principalmente de concreto, com manchas e descolorações visíveis por toda parte. Se a grande onda de construções realmente acabou, será uma pena que a infraestrutura da China tenha sido construída durante um período de arquitetura particularmente sem inspiração. A cidade é dominada por esses enormes complexos de apartamentos, blocos de 10 prédios adjacentes de 30 andares demarcados por vias de 8 faixas. Este layout parece ter sido projetado em parte para o controle social."

Ou, ainda, o que diz um artigo recente de Alfred Twu sobre o layout urbano chinês: "Em contraste com os edifícios médios abundantes nas cidades americanas modernas, as cidades chinesas preferem o que é conhecido como 小区 (xiaoqu), ou microdistrito. Estes empreendimentos residenciais compreendem vários arranha-céus em cerca de 15 a 20 acres, cercados por amplas vias arteriais. Os 小区 são construídos como condomínios fechados. Embora sejam principalmente residenciais, os microdistritos também oferecem lojas e serviços para os residentes, incluindo escolas. Eles não contêm, no entanto, escritórios ou indústrias, e o varejo é limitado a serviços que atendem ao bairro, como lojas de conveniência e restaurantes. A exigência de luz solar resulta em grandes espaços entre os edifícios, limitando a relação entre área construída e área do terreno a cerca de 2.0 a 4.0, mesmo para arranha-céus. Em certo sentido, estes edifícios são exclusivos à República Popular."

Da minha parte, suspeito que, em vinte anos, os filhos da geração atual verão esta forma urbana como estéril, confinada, saturada de concreto; e, ainda assim, tal formatação se apresenta como extremamente difícil de desmontar ou reconfigurar segundo o modelo americano ou japonês. Quanto à beleza espetacular dos centros chineses, os próprios habitantes vêm se cansando da poluição luminosa que, por ora, impressiona turistas. Moradores de Xangai, Chongqing e outras megacidades já começam a preferir menos exibições gratuitas de iluminação excessiva [4]. O boom imobiliário da China deixará atrás de si um inventário monumental de estruturas, algumas de fato fascinantes, mas, porque o ciclo foi alimentado por capital superabundante, muitos desses projetos nasceram mais como vitrines publicitárias para incorporadores que como habitats agradáveis ou funcionais. Os edifícios, inevitavelmente, perderão a aura de novidade: em três ou quatro décadas, o concreto armado tende a fissurar, rachar, fragmentar-se. O clima úmido da maior parte das cidades chinesas e a persistência de elevados níveis de poluição acelerarão esse processo, corroendo superfícies recém-polidas de torres erguidas nas últimas duas décadas. Edifícios construídos com materiais abaixo do padrão — e há muitos — entrarão em rápida decadência. Nesse momento, a China terá de optar entre A) uma manutenção e remodelação custosas para preservar a estética urbana, e, consigo, sua própria expressão de um futuro, ou B) o caminho mais barato, a saber, remendar e pintar blocos envelhecidos. O Japão segue a primeira opção, e por isso ainda exibe um urbanismo visualmente consistente, mas ao custo de vastos recursos sociais. Hong Kong e Taiwan optaram pela segunda, e o resultado é perceptível: já não há mais com o que se impressionar nestes ambientes, e turistas elogiam cada vez menos suas principais cidades. Soa divertido ir a uma cidade estrangeira, olhar os prédios e fazer julgamentos grandiosos sobre a força relativa das civilizações nos próximos mil anos, admito. As probabilidades, porém, apontam para um futuro mais distópico que utópico. Ir a Shenzhen, Chongqing ou Dubai, hoje, é como assistir à lenta corrosão do tempo e lembrar que a glória urbana destas cidades também vai se desintegrar.

Quanto à transformação da cultura global, uma parte crucial do soft power, a China ainda não pôde metabolizar este fluxo. Seu regime de censura, inevitável dentro de um sistema autoritário que, paradoxalmente, opera com altíssima eficiência em termos de estabilidade e bem-estar social, mas não é bem aceito pelo Ocidente, funciona como firewall cultural, bloqueando ou dissuadindo fluxos criativos antes que se tornem formas virais. À medida que a riqueza chinesa se expande, o consumo de entretenimento cresce em sincronia, e indústrias de espetáculo emergem, mas a censura pode amputar não apenas a emergência de obras genuinamente profundas, mas também a gestação de novas arquiteturas e expressões em um geral. Influir sua própria maquinização cultural ao Ocidente, então, é tão impensável quanto se queira, na medida em que, ao pular de uma sociedade à outra, se nota haver um abismo entre ambos os fluxos culturais, tão ou mais extensos quando comparados ao abismo geopolítico. No que compete ao futuro tecnológico da China, este, sim, soa mais plausível. O domínio absoluto sobre as tecnologias centrais da era elétrica — motores e baterias — continuará a destilar maravilhas, sobretudo porque os Estados Unidos perdem cada vez mais parte da sua hegemonia nestes termos. Táxis aéreos pessoais, carregadores ultrarrápidos para veículos [5], robôs humanóides capazes de executar saltos mortais [6] — nada disso será o ápice, e são não mais que sintomas iniciais do pipeline tecnológico chinês. A inovação não permanecerá restrita à esfera elétrica: os gastos colossais com pesquisa científica, combinados com os cortes profundos de Trump no financiamento americano, configuram um horizonte em que a supremacia científica chinesa parece inevitável. Até aqui, porém, a aceleração encontra seus limites temporais: seria insensato projetar um futuro estável para além de uma ou duas décadas. O progresso científico, afinal, ainda está vinculado ao capital humano, e, a partir do final da década de 2040, a China enfrentará a curva descendente de sua própria demografia. Depois que a geração Alfa percorrer o circuito educacional, a população entrará em declínio entrópico, irreversível. É claro que a inteligência artificial pode substituir humanos, mas, nesse ponto, a vantagem fundamental da China — sua população colossal de engenheiros e cientistas talentosos — começará a perder tração. O vetor se inverte: carne decrescente, silício crescente, em franca expansão. A civilização se reconstrói em tecnogênese, mas não sem deixar atrás de si a sensação espectral de que a própria população foi apenas matéria-prima descartável para a emergência de uma máquina maior.

Além disso, grande parte da liderança tecnológica da China se articula em um registro que escapa completamente ao pensamento ocidental. Todos os turistas se encantam com os carros elétricos e os trens de alta velocidade, é verdade, mas a China também ocupa a vanguarda global da vigilância eletrônica, a ponto de ter transmutado todo o território em um pan-óptico operacional. A internet é utilizada como instrumento de repressão da dissidência, e a integração da inteligência artificial tornará esse processo mais ágil, preciso, inescapável. O governo chinês já demonstrou disposição estratégica em utilizar a própria rede para exportar dissenso e incitar fraturas em outras sociedades, e é evidente que a IA tornará esse vetor muito mais eficaz. Em última análise, é isso que falta ao sinofuturismo: a promessa de enobrecimento. Mas, talvez, esta seja apenas a expectativa de um Ocidente humanista, preso à ideia de dignidade transcendental. Do ponto de vista tecnopolítico, não há nada a ser enobrecido; não mais que circuitos a serem estabilizados, populações a serem moduladas, ruído a ser convertido em ordem. À China, a IAficação e o pan-óptico não são distopias, mas pura infraestrutura sistêmica, e o que o humanismo chama de opressão pode, às vezes, se apresentar como mera otimização de uma profunda engenharia social.

[1] https://www.bloomberg.com/news/features/2024-01-07/china-risks-triggering-new-trade-war-with-xi-jinping-s-latest-economic-plan?sref=R8NfLgwS

[2] https://www.bloomberg.com/news/articles/2025-02-14/china-s-credit-expansion-picks-up-in-january-on-lending-push?sref=R8NfLgwS

[3] https://youtube.com/shorts/vIYSGwI5t5I?si=xjBKJNwx8gvBDKMk

[4] https://www.sixthtone.com/news/1011324

[5] https://insideevs.com/news/755163/chinese-evs-1-megawatt-chargers/

[6] https://www.youtube.com/watch?v=BJdgYw7xq74

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