A política é instituída como um discurso que busca a disputa, de transformar a realidade a partir da ocupação dos espaços públicos. O imaginário torna-se cada vez mais descentralizado à medida em que mais indivíduos acessam a disputa. No ideal ateniense, um seleto grupo era tratado com cidadania, ainda que dispusesse de um diletante desejo pela governança, como mais um de seus afazeres provocados pela aridez do ócio. A política, a partir disso, surge como uma crença muito específica: as ideias ganham certa solidez a partir do momento em que são colocadas na arena da Pólis, e a primazia do discurso sobre a realidade molda os rumos da sociedade. A partir disso, surgem problemas que também disputam a realidade, certos preceitos e estatutos morais que insistem em permanecer, pois seu fracasso social é sutil e abrasivo.
Em primeiro plano, é de grande valia reiterar uma chaga resiliente na modernidade: o humanismo. A política, mesmo que restrita em certos arranjos, tem como objetivo principal reafirmar os pressupostos horizontais que o humanismo carrega. A capacidade completamente igual de disputa e de validade que é inata de todos os seus participantes. No entanto, há aí uma armadilha muito clara: a autofagia. A repetição da humanidade em todas as suas organizações sociais não se trata de mero desconhecimento ou de uma questão dialética em relação aos ciclos de um determinado modo de produção. Trata-se aqui de uma atividade que é requisição básica da política: a perpétua propagação das mesmas ideias, que tomam roupagens diferentes. E aquilo que viola a política, portanto, é o empoderamento através de ideais que não reafirmam as práticas da sociedade. O sujeito que viola a política torna-se, a partir daquele momento, um anti-político, ou, como também chamam: um praticante de atitudes despolitizantes. O que há aqui, evidentemente, é uma coletiva e interminável psicose, onde, em profundo estado de mania, os agentes políticos trocam seus postos, seus objetivos e sua organização. Aquilo que é chamado de esquerda, direita, e derivados, não é nada mais que um indisposto reaproveitamento de tudo que já existe, de toda a ideia. Tudo ocorre apenas no cérebro, nas cognições, mas nunca num empreendimento real. Tudo repete-se porque as prescrições dos políticos são as prescrições morais, religiosas, de virtudes. A grande Atenas de nosso tempo tornou-se ouroboros desde seu nascimento. Não há possibilidade de mudança, como também não há possibilidade de originalidade.
Em segundo lugar, aliada ao ciclo de auto-referência, reside a polícia. A política, em sua essência autofágica, explora um dos aspectos mais densos nas relações sociais: a patrulha. Este ethos policial é mal direcionado na esfera política, onde aspectos da vida privada não têm, de maneira alguma, relação com aquilo que é disputado em público. Não importando a época, e não importando o modo pelo qual é feita, há uma substituição das infrações em sociedade. Um sujeito autônomo, cuja posição independe do ciclo organizacional político, é vetado e desautorizado enquanto indivíduo atuante. A polícia, neste caso, não é o ideal de um grande irmão, ou de uma espécie de panóptico, mas sim o rastro de um monismo social, uma univocidade da política com a civilização. Como diria um certo grego: "o homem é um animal político". A partir disso, é impedido de ser outro senão parte de um império que vive às sombras. Em função deste fato, é trazido à luz o último problema: o Estado como extensão, e não como ente transcendental à política.
É de conhecimento geral que o Estado é uma entidade complexa. Ele é a essência da organização humana, e nenhum outro modo de se organizar a sociedade obteve tanto êxito. Quando um grupo de homens decide colocar as coisas em seus devidos lugares, cria-se uma maneira de se organizar, de trazer o máximo de eficiência com recursos escassos. O Estado, neste sentido, coordena a escassez e aloca o que há à disposição de modo que não haja desperdício de forças. No entanto, sua transformação é visível quando a sociedade vai adquirindo mais complexidade. A ruptura reside quando o Estado deixa de ser uma entidade neutra que apenas reverte e converte toda a energia social numa expansão das forças produtivas e de bem-estar. Neste sentido, o Estado deixou de agir como empresa, e agora é a máquina perfeita para os agentes políticos: ela é composta de discursantes, e não funcionários. No lugar de operários da máquina, existem gerentes, sujeitos que reforçam a posição do Estado a partir de seu discurso. O nascimento do parlamento também é o nascimento da catedral: uma série de fiéis que não participam da sociedade, mas são responsáveis por moldá-las. A política torna a participação no seio do Estado não como carreira, mas como um acionista. O capital fechado tornou-se sociedade anônima, e, a partir disso, o Estado é desmontado a cada decisão divergente de seus gerentes.
Tendo o Estado sido desmontado, a sociedade se prende num ciclo de renascimento para o mesmo ponto e a política rege todos os aspectos da condição humana. A partir disso, espera-se nada mais que a modernidade enquanto reafirmação. A pós-modernidade, neste sentido, não é nada menos que a mesma coisa, assim como a modernidade era a mesma coisa, ainda que seu fingimento fosse mais convincente que o nosso período atual. O desejo latente deveria, e com razão, ter como ponto de retorno um Estado cuja identidade e patrulha se reduzem à busca imparável pelo bem-estar e expansão. A política, neste caso, deve ser colocada como uma atividade secundária, ou até mesmo digna de grande repúdio por parte do próprio Estado. Disputar ideais deveria ser uma brincadeira dos grandes palácios e grandes torres em que os intelectuais estão trancafiados, e lá deveriam ficar. A vanguarda da sociedade não deve ser decidida a partir das conjecturas desvairadas de uma elite intocada, mas sim pelo pragmatismo e neutralidade do Estado. O Estado, por fim, deve ser a entidade mais desinteressante e "esquecível" da sociedade, como aquela empresa que produz nossos eletrodomésticos, cadeiras para nos sentarmos e alimentos que comemos. E, a partir disso, não há o domínio político na sociedade, pois só há domínio se o estado é completamente dominado.